A seguinte passagem é parte de um relato que Álvar Núnez Cabeza de Vaca registrou, ou ditou, a seu secretário Pedro Hernández, sendo conhecido como “Comentários”. Trata-se de uma obra controversa, pois nela a figura de Cabeza de Vaca é exaltada. Neste sentido, o texto mostra um determinado tipo de tratamento com os índios. A partir da leitura do trecho que trata da travessia do rio Tibagi, comente o tratamento que os indígenas receberam dos espanhóis durante a passagem pela região e reflita se este poderia corresponder a realidade, visto que conflitos existiam.
(...) e aos três dias do mês de dezembro chegaram a um rio que os índios chamam de Tibagi. É um rio com leito pedregoso, com pedras regulares, de lousas grandes, dispostas com tanta ordem e harmonia que parecem terem sido colocadas à mão. A passagem para a outra margem foi muito difícil porque os homens e os cavalos escorregavam nas pedras; foi necessário amarrar os cavalos uns aos outros para a travessia, pois apesar de o rio não ser muito fundo, a água corria com grande fúria e força. Vindo de duas léguas de distância deste rio, chegaram alguns índios, trazendo mantimentos para a expedição, em tal quantidade que não faltava o que comer. Além de pagar pelos víveres recebidos, o governador dava aos chefes índios muitos presentes, de maneira que corria sua fama por toada a terra e província, e todos os naturais perdiam o temor e vinham vê-lo e trazer-lhe tudo o que tinham, o que era sempre pago. (...) Considerando o governador que sua gente não tinha experiência no trato com os índios, e como não desejava nenhum confronto com os mesmos, proibiu que seus homens comercializassem diretamente com eles, falassem com eles ou se aproximassem de suas aldeias, pois os índios eram muito desconfiados e ele não queria que qualquer fato os enraivecesse, o que poderia redundar em desastre para a tropa e sobressalto em toda a terra. Determinou também que as pessoas de seu grupo que falavam a língua nativa se encarregassem de comprar os víveres, por conta do governador, distribuindo-os diariamente a todos os homens. Era de se ver quão temidos eram os cavalos, e os índios, de tanto temor que lhes tinham, traziam para o caminho muitos alimentos para os cavalos, dizendo que, se eles não se enraivecessem, lhes dariam bastante comida. Os nativos, vendo que o governador castigava aqueles que os ofendiam, vinham todos muito seguros, com suas mulheres e filhos, e de muito longe vinham carregados de víveres, só para ver os cristãos e os cavalos, para eles figuras estranhas que nunca tinham visto passar por aquelas terras.
Extraído da obra: SOARES, O. O andarilho das Américas (Cabeza de Vaca). Ponta Grossa, UEPG, 2009, p. 127-129.